quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Pela estrada afora

A gente vem assim: cheios de inocência, de olhos que não sabem o que é olhar para trás, de pés que anseiam trilhar o novo, de vontade de correr e abraçar.

Quando a gente ainda não cresceu se tem fome, come; se tem sono, dorme; se está triste, chora; se alegre, vibra. E o mundo parece tão grande e a gente parece tão pequeno.

A gente encontra satisfação em juntar conchinhas, em imaginar bichos brincando com pedrinhas e que maravilha quando há uma mangueira e um adulto querido que participa da brincadeira de molhar, com sorte, o corpo inteiro.

Aí a gente vai crescendo e vai esmaecendo a tintura do dia. Importa mais coisas que não têm importância. O dia engole a vontade de visitar o amigo, a avó. O passarinho é só um passarinho, o olho não perde tempo para olhar a vida.

A gente é gente grande e o mundo que antes era grande e que ia ser conquistado parece que ficou maior, mais cinza.

Nascer pressupõe morrer, mas não precisa ser enquanto se pode viver. Todo dia a gente morre um pouquinho, mas todo dia a gente vive e pulsa e deve sonhar e fazer acontecer o sonho na vida de quem já não acredita ser capaz de subsistir.

A inocência de outrora deveria sempre se transformar em curiosidade diária, em felicidade de saber-se vivo e caminhante, em satisfação de poder doar-se para quem precisa, em ser norte para si e para quem necessita de bússola.

A gente é um vagão num trilho a perder de vista. O fim quem determina não é a gente. Enquanto a gente vai, vão conosco outras pessoas, dias de sol e de tempestade, borboletas e cupins, ipês e espinhos.

Desejo que o desejo de viver esteja em mim até quando não houver mais eu. Desejo isso pra você também. Pela estrada afora.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Confissão

Vestido de flor, cheiro de flor
Um de clara luz
Outro de violeta cor.
Coloquei o meu melhor
No toque suave em tua barba
Pulsa. Tamborila.
Não há outro amor além do nosso
Confesso em linhas poucas
Em abraços muitos.
Fui enchendo de luz o vazio, o largo dos passos
Fui sendo semeada de esperas e cantigas desejosas de longos suspiros.
Tua mão áspera. Teu amor leve.
Sempre alcanço teu peito
E ouço a eternidade com cheiro de lavanda e o conforto de lençol amassado após o nosso despertar.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Clichês

Clichês dos quais sou simpatizante:

Educação e atenção

Sinceridade e silêncios

Café quente com tapioca

Amigos e família

Amar o mesmo homem todo dia

Esperar em Deus

Gostar de flores

Cheiro de lavanda

Lençóis limpos na minha cama

Filhas em casa

Som do sino da igreja

Dizer "como minha vó dizia"


Cheiro de chuva

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Parabéns para Gabi

Enquanto comemorávamos duas décadas do nascimento de nossa filha mais nova, comendo hámburgueres junto com ela, fomos abordados pelo menos três vezes por pessoas pedindo "um trocadinho". Dois adultos, ambos aparentando estar alcoolizados e uma criança, com não mais que oito anos.

Quanto mais o tempo passa mais meu coração fica incomodado com as coisas tristes do mundo. Faço o que está ao meu alcance mas não tenho como atender e minimizar toda dor que vejo. Falta dinheiro, alimento, remédio, calçado, agasalho. Falta palavra, abraço, amor, compaixão. E os olhos que pedem estão tão sem brilho, as faces sem expressão.

Comemos. Uma das pessoas que pediram, receberam umas moedinhas. Pagamos com cartão. Fomos embora. O incômodo veio comigo.

No caminho de casa, numa praça, vejo uns seis funcionários do supermercado que fica pertinho dali, ainda de farda, ao redor de um banquinho. Tem refrigerante e um lanche. Um deles segura o celular, na posição de fazer uma selfie, enquanto os outros cantam e batem palmas. Deve ser também o aniversário de um deles. Comemoram, depois de um dia de trabalho, a vida.

Penso em Deus. Em como ele deve sentir os cansaços e as dores do mundo. E como deve se alegrar quando nos alegramos.

No sinal vermelho, paro. Aguardo e peço que bênçãos recaiam sobre todos e em especial sobre minha filha. Que tenha uma vida sem muitos espinhos, que socorra aqueles que dela venham a precisar, que seja feliz e esteja sempre à disposição do bem, que seja reflexo do amor.

Observar, florescer, partilhar. Renascer todo dia para não encrudescer e não esquecer para que viemos.
Parabéns para Gabi!

domingo, 29 de julho de 2018

Pela madrugada

Noite adentro trabalha o dia para raiar.
Pelos espaços da madrugada
Nascem esperanças, músicas, filhos e aflições
Uma hora estarão cobertos de luz
Uma hora estiveram em penumbras da criação.

Parece tão triste essa alegria pelo caminho
Parece tão lenta a rapidez do crescimento
Parece tão minha a menina que cresceu

Nesse avançar das horas e suas janelas
Descansa meu corpo ansioso por saber
Onde florescerão os parcos genes de eternidade que, lembro, transmiti.

terça-feira, 15 de maio de 2018

A vida (e eu)

Estive sentada lado a lado com a vida
Contou-me do dia em que nasci
Sem querer revelar-me nada adiante daqui
Pensei nas flores postas no jardim
Pensei nas flores que serão postas, um dia, para mim
Dos segredos trocados entre as palavras ditas ficou uma imensidão de silêncios entre nós.
Passei minha mão sobre a maciez do caminho
A vida tocou-me os pés com a aspereza do caminho.
Nossa parceria rende amores, dores, suspiros e um peito cheio de passarinhos e noites amanhecidas.
De mãos dadas. Eu e a vida.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Bem minúscula

eu. bem minúscula
expressão de amor e dor
pelo caminho e nas paragens
na luta diária entre seguir ou esperar
florescem entre os dedos
as ervas boas e as daninhas
eu. nascida com o sol
fortaleza na mansidão
escuridão de palavras sufocadas
arrebol avermelhado no fim de tarde
no fim do dia
nada é tão claro
a luz é fugidia
sobe e desce o meu peito
inspiro a vida invisível do ar
sou eu. bem minúscula
pedra de construção
altar para revelação