terça-feira, 31 de agosto de 2010

Os amores e a estrada

A Poeira e a Estrada
Maciel Melo
Amigo olhe a poeira, olhe a estrada
Olhe os garranchos que arranham pensamentos
Entre o cascalho,vá separando os espinhos
Não esqueça que os caminhos
São difíceis pra danar
Nem todo atalho diminui uma distância
Nem toda ânsia no final tem alegria
Veja na flor que o espinho lhe vigia
A noite adormece o dia
E a lua vem lhe ninar
Devagarinho vá pelo cheiro das flores
Siga os amores nunca deixe prá depois
Nem tudo é certo como quatro é dois e dois
Nem todo amor merece todo coração
Se a poesia ainda não lhe trouxe o fermento
E o sofrimento entre o amor ganhou a vez
Nem tudo é eterno quando a gente ama
Por isso amigo não se entregue agora
Talvez um dia o mundo lhe peça perdão
Por isso não se perca não
Os amores vão e a gente fica




Os amores vão e a gente fica. O primeiro amor que se foi, na minha vida, foi meu tio Bila. Morreu vítima de esquistossomose. Depois meu avô. Era taxista. Foi assassinado. Tinha 71 anos. Costumava dizer, sorrindo, que a minha avó já tinha sido uma uva e agora era um abacaxi. Não teve oportunidade de descobrir a graça de ser bisavô. Eu estava no sétimo mês de gravidez da minha primeira filha. São partidas doloridas, esqueci muitas vezes que eles já não estavam aqui.
Outros amores mudam de roupagem, mudam de cidade, mudam de casa.
Nem tudo é eterno quando a gente ama. Talvez esse verso tenha descoberto a origem de toda saudade.
Minhas bonecas, minhas tardes de domingo na casa de seu Chico do Foto, minhas viagens ao Recife para casa da minha tia, nas férias. Minhas conversas paralelas e primárias no Colégio Imaculada, meus encontros diocesanos no Colégio Cardeal. Tanta coisa que amei. Os amores vão e a gente fica.
Amigo olhe a poeira, olhe a estrada. Olhe os garranchos que arranham pensamentos. E seguimos sempre em frente. Não importa se na caatinga ou num verde prado. Doando-nos. Recebendo o retorno da vida que pisamos com nossos olhos, nossas palavras.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Análise

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

O primeiro contato que tive com este soneto, de Vinícius de Moraes, foi na minha adolescência. Eu cursava a 8ª série. Sempre gostei de ler. Primeiro gibis, depois tive uma fase de Agatha Christie (meu preferido era O Caso dos Dez Negrinhos),em seguida veio Sidney Sheldon (lia tudo que minha tia comprava). Clarice Lispector, Cecília Meireles, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Alves, Martha Medeiros, Padre Fábio de Melo, Professor Felipe Aquino, Pablo Neruda. Um escritor nos apresenta a outro.

Voltando ao Soneto da Fidelidade: primeiro me encantei, depois um amigo me disse que não dava muitos créditos a Vinícius de Moraes exatamente por causa das últimas palavras (ele acha que o amor é considerado como descartável). Aí, em solidariedade ao meu amigo, desencantei.

Hoje resolvi fazer uma releitura. Talvez 'o poetinha' não estivesse descartando as maravilhas do amor, o doar-se, a satisfação de fazer o outro feliz, o abnegar-se por vezes. Talvez ele estivesse querendo destacar a nossa condição de mortais, chama tênue na linha do tempo.

"Que seja infinito enquanto dure". Enquanto dure a nossa vida, durará o nosso amor.
Quero ser inteiramente sua, com as reservas necessárias. Quero poder me entregar. Entregar meu corpo e meus suspiros amorosos. Poder enxergar a mesma paisagem, segurando em sua mão. Aninhar minha cabeça no seu ombro, enroscar minhas pernas nas suas, como no princípio e hoje, e dormir alisando o dorso da sua mão.
"Quem sabe a morte, angústia de quem vive." - vai me encontrar preparada e satisfeita ou por partir ou por ficar. Indo ou permanecendo saber que o amor de Vinícius, extinto pela condição, reverberava o amor de Fernando Pessoa: Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a achar-te quando te encontrei.
"Quem sabe a solidão, fim de quem ama." - e aqui, neste ponto, vem o desacordo, o desatino. Quem ama NUNCA está ou irá ficar sozinho. Nem a solidão dos poetas lhe será concedida. Então completo com umas palavrinhas de Neruda: 
Mas se amo os teus pés
É só porque andaram
Sobre a terra e sobre
O vento e sobre a água,
Até me encontrarem.

Quero para mim um amor que queime a cera da vela para iluminar. Percorra o caminho para me encontrar. Anseie por meus braços para descansar. Até que enfim, ao partir um dos amantes, os poetas fiquem a imaginar porque não escreveram tão lindo verso.

domingo, 29 de agosto de 2010

Pequena pedra

Pequena pedra. Seixo que rola ladeira abaixo.
Às vezes, embora eu saiba de que matéria sou feita, me sinto como uma pedra que rola.
A vantagem é que no caminho, arredondando minhas arestas, vão as outras pedras, os pequenos galhos, ás árvores de largos troncos. Enviados. Mensageiros. O caminho, ao fim, me moldou.
Resguardar-me de mim e entregar-me Aquele que tudo sabe, que rolou a pedra do sepulcro, que está vivo no meio de nós. Creio que mesmo sem que eu peça ou note, Deus cuida de mim.
Eu, pequena pedra, sou instrumento do amor de Deus. Por mim, através de mim, boa obra deve ser feita.
No mistério divino, sou a pedra que rola ladeira abaixo, ergo paredes e pontes, esvazio-me ao escutar Sua voz - deixo meu coração de pedra transformar-se em pedra de edificação.

Cadê

 
...Cadê o riso de Luzia
Que me disse um dia 
A lua é de nós dois...



A gente vai vivendo a vida e conhecendo pessoas ao largo do caminho.
São como plantas: umas medicinais, outras ornamentais. Algumas trazemos para casa e em suas sementes germinamos a nós mesmos. Tornam-se árvores de frondosa sombra onde retornamos quando precisamos sentir que ainda estamos vivos e somos amados.
Outras, de raízes superficiais mas de rara beleza nos encantam enquanto ainda estão vivas. Por vezes outros andarilhos arracam-nas e as oferecem ao mundo.
Bem pertinho da cerca, estendem os galhos as árvores frutíferas. Foram plantadas e podadas, seus donos não lhes impedem o acesso, mas as cercam, protegendo-as e direcionando-as para uma grande safra.
Ainda há aquelas que já se apresentam como unguento a nossas pernas marcadas pelos espinhos. Seus olhos e suas mãos são xícaras contendo beberagem que conforta e redireciona.

No início dessa postagem tem só um trechinho de Maciel Melo (http://www.macielmelo.com.br/musicas/), da música O Velho Arvoredo. A gente vai caminhando e nessa estrada circular vai se lembrando do que fomos e como nos tornamos e o que conservamos do outro.

Onde andará você que tanto me fez rir? E quem me deu a mão e o coração? E quem está distante, com quem não falo há tanto tempo? E quem mora bem ali e não visito? E quem me aqueceu a alma?

Cadê o riso de Luzia, que me disse um dia: a lua é de nós dois.

Desejo que muitos lembrem que passei em suas vidas. Que eu lhes tenha dito uma palavra de luz. Que ao lembrar de mim brote uma saudade do momento de nós dois. Clarice Lispector fala que a amizade é matéria de salvação.

Talvez alguém diga: Cadê Valéria, que me disse um dia...

Retratinho do meu amor

No pé de flor,
em suas folhas mirradinhas
Depositei minhas saudades
Foram levando as formiguinhas
Toda ausência que havia em mim
A presença do meu ser
Estranho lembrar do meu respirar
Porque estando eu ali
Em outros cantos podia estar
Na ânsia de (re)encontrar sementes e pólen
Seguro no sopro do vento
E adentro em seus cabelos
É noite enluarada
É lembrança de um outro dia
Quando em minhas mãos refletiam
Prateados raios entre as nuvens.
No pé de flor
Retratinho do meu amor.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

(A)mar

Eu gosto demais do mar. É uma pena que seja longe do meu sertão.
Gosto do barulho da onda quebrando na praia, da água salgada, da areia entrando entre os meus dedos.
Gosto de sentar e ficar ali, quieta, só olhando.
Quando éramos crianças, eu e meu irmão íamos acampar no litoral do estado de Alagoas. Em Barra Grande. Mar calmo, areia branquinha. Na maré baixa dava para ir até os arrecifes olhar os peixinhos e ou ouriços. Caminhando sobre aquelas pedras, de biquíni, arrodeada pela natureza e pela minha família. Acho que no céu tem um lugar que vamos visitar que tem cheiro de infância.
A época certa de irmos era no carnaval. A tardinha íamos até o vilarejo comprar pão, queijo e gelo. Minha mãe fazia da nossa barraca uma extensão de nossa casa. Lembro que no nosso almoço tínhamos uma refeição enquanto nossa 'vizinhança' fazia só uma 'meia-sola'.
Antes da farra de ir ao vilarejo, tinha o banho com água doce, água de cacimba. Água fria, banho sem tirar a roupa, mas o dia todo tinha sido tão bom que valia a pena aquele sacrificiozinho.
Meu primo Ricardo também ia. Uma vez depois de tomado o banho e trocada a roupa, apareceu uma La Ursa (uns meninos batendo numas latas, outro vestido de 'urso' e todos cantando: a La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro!) . Ele ficou com medo e correu, mas já estava escurecendo e ele tropeçou nas cordas das barracas. Chegou parecendo um bife à milanesa...


Era uma alegria ir passear no barco do meu pai, antes dele ir pescar em alto-mar. O irmão do meu pai também ia e lembro bem que não havia quase nada que um dissesse e o outro concordasse: se um dizia que o melhor horário seria cedinho o outro dizia que era à noite, que era melhor pescar usando camarão como isca o outro 'contratava' a gente para caçar maria-farinha.
Depois do jantar, pegar uma cadeira desmontável e se distanciar um pouquinho. Um céu lindo, desnudo das luzes da cidade. Todas aquelas estrelas. Bem longe uma jangada com a sua luz de candeeiro - o pescador encantando os peixes.
Já naquela hora eu planejava procurar conchinhas no outro dia. Tinha muitas patas de vaca (na internet achei a imagem como bolacha-do-mar), aquele ser do mar que tem uma flor desenhada em cima. E as conchinhas recém desabitadas davam forma a lindas borboletas.


Na hora de desmontar a barraca, juntar todas aquelas tranqueiras para voltar para casa, me alegrava ouvir meu pai combinar com os outros adultos quando seria o próximo encontro. E voltávamos ao som de Roberto Carlos e dos Demônios da Garoa.
Meus pais me deixaram uma herança ainda em vida: felicidade.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A terra do índio

Nossas atitudes refletem em nosso meio ambiente: e ele responde que não aprova, vociferando ventos e tempestades, torrenciais chuvas, derretendo geleiras.
Comportamento e atitudes. Pressupostos de uma educação que vai além de sintaxe, morfologia, estatísticas, cálculos, localizações geográficas.
Dentro de nós, acredito, há índios da época do descobrimento, que consideravam a terra sagrada. Na sua religião politeísta, viam o Deus onipotente na lua, no sol, na chuva. Respeitando sua sustentabilidade não exauriam o ambiente onde viviam. Quando escasseavam os recursos, mudavam-se, sem deixar faltar a seiva da árvore. Não que devamos tornar-nos nômades, mas devemos agir como tais, até porque estamos mesmo só de passagem. Minha índia não toca tambor mas alegra-se com um ambiente limpo e por respirar numa cidade onde o ar não adoece os pulmões.
Jogar o lixo no lixo é obrigação nossa. Reciclar também. Nem que seja juntando garrafa pet para os catadores venderem à indústria de reciclagem.
Imprimir menos. Apagar as luzes, em casa e no trabalho. Racionalizar o uso da água.
Na escola, quando eu era pequena, aprendi a importância de lavar às mãos. Hoje minhas filhas aprendem que além de lavar as mãos devem verificar se a torneira, ao término, encontra-se fechada.
A trama das linhas é que resultam o tecido.
Atitudes e comportamento, onde menos é mais.
A banda Pato Fu canta uma música, chamada Simplicidade, que tem um versinho assim:

Vai diminuindo a cidade
Vai aumentando a simpatia...
...Quanto mais simplicidade
Melhor o nascer do dia

O progresso, de forma geral, nos 'empurra' para frente. O problema é: quantos passos faltam para o precipício, para o deserto? De que tamanho é nossa disposição para plantar uma semente cujos frutos talvez não vejamos?
Bill Watterson, na tirinha, diz na sinceridade de Calvin, que talvez pudéssemos perverter um visitante consciente. Penso que talvez o tronco desolado fosse uma linda baraúna.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Braços, cheiro e carinho

Braços. Cheiro. Carinho.
E não vou escrever sobre o amor entre seres humanos.
Hoje li e escutei essas três palavras. Acompanhadas do termo "de Deus".
E o que seriam braços de Deus? Abraço de amigo, cobertor a um sem teto, copo de café ao faminto, visita ao enfermo, auxílio para levantar-se da queda, mãos postas em oração.
O sol no capim, a chuva na terra, pimenta de cheiro, manjericão no pé, lençol limpo, chá de erva-cidreira. Os cheiros de Deus confortam nosso espírito, ainda que não tenhamos consciência de que sejam Dele.
Regaço acolhedor. Colo de mãe, de pai, de tios e tias, de avós, de irmãos, de filhos, de amigos. Olhos suaves na espera do consultório. Palavras contundentes na homilia. Carinho de Deus em nossos ouvidos, em nossos olhos, em nossas mãos. Remédio para as nossas feridas.

E fico imaginando: como foi, entre Maria e Jesus, esse grande mistério? Essa grande troca? Ela como mãe, toda braços, cheiros e carinhos. Ele como Deus, fonte de todos os braços, cheiros e carinhos - tão pequeno e tão grande - aninhado no regaço de sua mãe? Só me cabe a contemplação.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Só um pouco sobre o amor

Ser amoroso. Ser derivado do amor.
Não ser apaixonado. A paixão anuvia a visão, acelera o dia, impacienta o coração.
A serenidade do amor permite que seja perene, que serpentei no leito entre as pedras, por cima das pedras. Aceitar o outro, enxergar suas falhas, amoldar-se às arestas. Partilhar as expectativas. Demonstrar preocupação pelo atraso, pela ausência da ligação. Ansiar pela respiração ritmada. Sentir o cheiro do perfume preferido pelo ser amado, ainda que a distância entre os corpos não seja menor que 200 km.
Fala-se sempre da paixão virar amor. Eu prefiro alimentar o meu amor com paixão. Prefiro o pequeno sofrimento da espera, a quentura das mãos dadas, a brandura da entrega. Nesse contexto prefiro regar a minha plantinha com conta-gotas. A torrente de água machuca as folhas, escava o terreno.
O amor faz da paixão objeto de respiração. É como mergulhar num lindo e límpido mar azul e deparar-se com todos aqueles corais, conchas, peixes. Sem ajuda externa, prendemos o ar em nossos pulmões e apreendemos no mais íntimo de nosso ser toda aquela sensação de partilha e doação. Porém, sem o mar não seria possível fazer essa distinção.
Possamos dizer à pessoa amada como no filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain: "Sans toi les emotions d'aujord'hui ne seraient pas que peau mort des emotion d'autrefois" - SEM VOCÊ, AS EMOÇÕES DE HOJE SÃO PELE MORTA DAS EMOÇÕES DO PASSADO.

domingo, 22 de agosto de 2010

Faces e fases, a lua e eu

"Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua" ...
Cecília Meireles






Introspecta. Café. Caneta e papel. Ouço o silêncio da noite e os gritos do meu ser. Eles vêm vindo e se transformam em letras paralelas e azuis na pauta do papel. Saem florezinhas rabiscadas no canto da folha. Pontos, interrogações, exclamações, de mãos dadas cantando uma canção riscada naquelas palavras.
Sou o que penso. Penso no que transformo, executando a vida que arde em meus pulmões -  que agora repousam sem vociferar parábolas.
Na medida em que desabrocho, estendo meus galhos através dos vãos do portão, e toco o braço da anciã e a mãozinha do bebê. Simbioticamente torno-me grão maduro na colheita e semente na terra molhada.
Em exibição. Suco de laranja, sanduíche americano, máquina digital. Ouço os carros, vejo os passeios de bicicleta, o arrulhar dos namorados. Anseio saber desenhar. Na minha folha, andrajos rabiscados. Exposta no final de tarde poucos me vêem, há ainda muita luz naquela hora.
Hoje à noite, sou nova, luz cinérea em meu enigmático sorriso. Só risos antes de tornar-me cheia de sonhos e caminhos. Antevejo a minha ausência. Pulso latente. Antiga nova fase.
Introspecção. Revelação. Silêncios. Vagalumes.
Vem chegando o dia.
Vem chegando a noite.
Concordo com Cecília, às vezes me escondo, às vezes me revelo.



sábado, 21 de agosto de 2010

Fotografias


Se houvesse um incêndio em sua casa, estando todos fora de perigo, e você pudesse salvar algo, o que seria?
Eu tentaria salvar todas as fotos que guardo, como um tesouro, no guarda-roupas do quarto de visitas. Não queria mais nada.
Lá naqueles álbuns e nas caixas há toda uma história.
No álbum cor-de-rosa, que tem uma ovelhinha na frente, tem a inexperiência de uma mãe, todo o medo da pergunta que não calava - será que eu vou dar conta desse bebê? Tem o primeiro sorriso banguela, a cara pintada de sarampo, a ida à escola.
Naquele outro, tem uma pinga-fogo segurando um calango pelo rabo, a boca vermelha de batom, o cabelo assustado pelo despertar.
E ainda tem mais um que traz o último bebê que concebi. O cabelo avermelhado depois mudado em loiro, a chupeta inseparável, o bumbum de fralda.
Abrindo as portas do guarda-roupa há um mundo de lembranças. Aniversários, passeios, caras feias e simpáticas, saúde e doença. Retratos do amor que construimos.
Lá também guardo as fotos antigas que trouxe da casa da minha avó e da minha sogra. Tem gente que nem sei quem é, mas me agrada olhá-las nos olhos, ver os detalhes da roupa, do ambiente. Acho interessante as dedicatórias e também as histórias contadas por quem participou daquele momento.
Minha cama, minhas roupas, maquiagem, os armários da cozinha, os sofás, a televisão - tudo posso comprar de novo, entretanto aquele olhar encantado a me fitar enquanto eu dizia, ei, bebê, olha prá cá!, emoldurado naquele instante, se o fogo queimasse... Como poderíamos nos reunir, sentados na cama, participar do elo invisível que nos proporciona a recordação da foto?
Estão guardadas e silenciosas as alegrias da minha infância, da minha juventude magricela, do meu casamento, das viagens com brinquedos, fraldas e mamadeiras.
E é bastante abrir um álbum para sentir cheiro de lavanda, de pizza feita em casa, de lápis cera no papel em branco, de terra molhada, de amor de família.
Chamuscada eu ficaria apenas pelas fotos.

Caminho

Suspiros. Intervalos.
O caminho de ida:
Indo, voltamos.
Sentimento de completude
Ao ver aquele pequena flor azul.
Raios de sol da tarde
Queimam minhas pernas enquanto caminho
Por entre as pedras.
Passou por mim um beija-flor
Ou teria sido eu a tremular por entre suas asas?
A chuva desabrocha nas flores
O desejo da beleza.
E elas, em suas pétalas,
Sorriem para Deus - molduras do meu caminho.
Respiração. Continuidade.
Independem de mim as abelhas que vejo.
Estão nas flores brancas.
Perdidas de amores?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Sertaneja

Sertão (Wikipédia) - ...seu significado original refere-se a uma região afastada dos centros urbanos, distante ou com pouca "civilização" (o nome é derivado da expressão "desertão", utilizada na época colonial para referir-se ao interior do país).
Ou, simplesmente, o interior de um país ou região.


Eu sou sertaneja. Nascida e criada no portal do sertão de Pernambuco.
Aqui, na minha infância, tive uma bicicleta Caloi azul, brinquei de me esconder entre as barracas da feira livre (que acontecia as sextas e sábados), lanchei pão com manteiga esquentado 'na chapa' acompanhado de guaraná Antárctica (caçula), fui à casa das minhas amigas para brincar de boneca, jogar dominó e fubica. Joguei bola no meio da rua e comprei macaúba, jambo e siriguela no mês de dezembro - nas barraquinhas da tradicional festa do comércio. Joguei queimada depois da aula no Colégio Imaculada Conceição e chupei picolé feito de essência de morango para enganar a sede e diminuir o rubor das minhas bochechas. Aos domingos fui muitas vezes visitar os parentes ou amigos do meu pai - e nesses passeios brinquei com pintinhos e me espantei com porcos grandes, gordos e cor-de-rosa. Fiquei ansiosa na minha primeira Eucaristia e participei, ainda como criança, da missa dominical das 11 horas da manhã - que era para os jovens.
E me tornei jovem. Treinei basquete, usei meu primeiro sutiã, fiz cachos no meu cabelo. Participei de muitos encontros para juventude na quadra do Colégio Cardeal Arcoverde. Ajudei nas feiras da fraternidade. Fui fã da banda RPM. Fiz amigos juvenis que me aturam ainda hoje. Comecei a aprender tocar violão. Fui menor aprendiz no Banco do Brasil e lá entreguei meu coração à pessoa que o monopoliza até hoje. Nunca usei minissaia, cresci demais e me envergonhava das minhas pernas e braços longos.
Amadureci, não fui estudar fora. Terminei a faculdade de Letras, fortaleci as amizades da minha infância e juventude, comi macarronada na barraca de Mara, dividi meu refrigerante, minhas ideias e meu casaco. Aprendi com a dureza das pessoas. Aprendi ser bondosa. Exercitei minha voz desafinada nas rodas universitárias de violão. Ri muito e conquistei pessoas que se sentem felizes em me reencontrar.
Casei na igreja Matriz Nossa Senhora do Livramento. Casamento oficiado pelo mesmo padre que me orientou na infância e na juventude. Fui mãe. Fui mãe. Fui mãe. Três vezes menos do que planejei.
Ser do sertão é referência geográfica. Orgulho-me de ser sertaneja, como orgulhar-me-ia ser pantaneira, gaúcha, paulista, paraense ou paraibana.
Não sou mais nem menos. Sou nascida na Terra.
Não tenho o mar, tenho a caatinga, com suas flores vistosas.
Não tenho largas avenidas, mas tenho um grande pomar.
Não visito o shopping aos domingos. Almoço na casa da minha avó.
Não enfrento o trânsito do sábado à tarde. Vou a pé para a casa da minha sogra.
Meus vizinhos sabem meu nome. O carteiro sabe onde eu trabalho.
Orgulho-me dos espinhos do mandacaru, o que não me impede de admirar as araucárias.
Aprendi não desprezar.
Prezar o que é bom e belo, independente de onde venha e para onde vá.

Ser sertaneja e pernambucana me permite dizer:
- Ôxi, menina! Avie logo! (se você não entendeu, só pedi para a menina se apressar)
Porém, ser sertaneja, pernambucana, nordestina, não me impede de ser cosmopolita, poliglota, antenada com os acontecimentos.

Todos da mesma matéria feitos. Com números de série diferentes. Para e em divisões diferentes. Mas iguais no feitio. Ser sertaneja me iguala ao ser criatura.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Quero ser borboleta

"Todo o bem, todo o mal que eles te dizem
Nada seria, se soubessem expressá-lo...
O ataque de uma borboleta agrada mais
Que todos os beijos de um cavalo."
Mário Quintana


Trago comigo, essas palavras.

Decidir, conduzir, tudo é muito complexo. Diariamente temos que escolher: a alegria ou arranjar mil motivos para justificar a tristeza; ter atitudes pequenas ou semear pequenas atitudes. Escolher entre a fruta e o chocolate, entre o banho frio ou morno, entre a televisão ou a casa do amigo, entre a doação e a acomodação. Somos os juízes das nossas vidas, os árbitros de nossas escolhas.
Nas sendas por que andamos encontramos pessoas diferentes, cada uma com sua história, cada uma com a sua verdade. Somos mesmo assim. Somos individuais e nessa particularidade cada um deseja ter o que é seu, ainda que seja a rispidez, a falta de hospitalidade, a ausência da humildade.
Deixei de comprar numa loja, que muito me agradava na oferta do produto, porque os donos destratavam seus funcionários, humilhando-os com palavras desnecessárias. Não sou obrigada a partilhar dessa ausência de Deus.
Os códigos de ética tratam de colocar limites onde a sua existência é tênue. Pena que apenas a sua existência não seja suficiente para reposicionamentos.
Em nossa curta, brevíssima, existência deveria ser constante a preocupação com o que vamos deixar de herança, de marca nos outros que vão ficar depois que partirmos. Porque, ainda que não haja mais respiração, haverá nos olhos que permanecerão abertos o horizonte da gentileza que desbravamos.
Mais grave é o machucado que não aceita lenitivo. Duras palavras e atitudes desmedidas não geram resultados perenes.
Quero ser a borboleta.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poesia da lágrima

Não gosto que me vejam chorando. Não gosto que ninguém me veja chorando.
As lágrimas são válvulas de escape, são a sangria da represa. Sentimentos transmutados em água salgada.
Ninguém nos ensina sobre essa mudança de estado. Não aprendemos a regra. Não há qualificação: fusão, vaporização, solidificação, liquefação, sublimação. A passagem do meu cérebro para o estado líquido não consta dos manuais, nem de tratados e eu ousaria dizer que um bom termo qualificatório seria mutação.
Certa vez fui ao médico homeopata e ele me fez a seguinte pergunta:
- Você sente vontade de chorar quando vê, na televisão, alguma tragédia?
E eu respondi, de pronto:
- Não.
E hoje ainda tenho a mesma resposta. Embora eu me comova com aquele sofrimento, meus olhos não choram.
A pergunta me incomodou. Fiquei achando que era insensível.
Outro dia fui a um velório. Familiar com quem não tinha muita aproximação, mas a minha comoção era tanta que mais parecia que eu estava velando minha melhor amiga de infância. A dor daquela mãe, a fortaleza intentada pelo pai, os abraços daqueles amigos... Aquele corpo tão jovem, inerte para este mundo. Tornei-me lágrimas naquele instante.
É tão fácil sorrir junto e tão complexo compartilhar aquela enchente que faz o outro soluçar.
Fazem arder meus olhos comer couve-flor no almoço - porque aquela que me é cara, que lambe a panela, não está à mesa comigo; e lembrar do meu avô; e assistir um filme meloso, com uma trilha sonora apaixonada; e decepcionar-me com quem gosto.
Despedidas também me ocasionam lágrimas.
Chorar me dá sono. A mutação em mim ocasiona efeitos colaterais. Desfaleço, imitando a intolerância que o cérebro tem à dor. Dormir me livra de chorar.

E de lágrimas feito o poema
Escrito em poucas rugas
Trilhas de curto percurso
Linhas de muita expressão
Olhos de alma ansiosa
Pelo conforto das horas tardias
Rimas de lágrimas fugidias
No aceiro das minhas escolhas
Incêndio nos olhos relutantes
Em deixar fulgurar pelo caminho
Transmutada composição.




Flores

Uma das coisas de que gosto são flores. Não importa se são 'do mato', como dizemos por aqui, ou fidalgas moradoras de jardins projetados ou estufas.
Todo sábado ganho flores. Minha mãe compra umas hastes de angélica - perfumadas, branquinhas. Quase sempre vêm acompanhadas (pasmem com a redundância) de carinho de mãe - acho que receberam esse nome por serem abundantes e delicadas. Na minha casa ocorrem umas coisas engraçadas: no dia das mães, a minha MÃE me dá presentes!
Aqui no meu jardim, tem rosas cor-de-rosa escuro, cor-de-rosa claro, amarela, vermelha, tem beijo e beijo dobrado, tem lírio de São José e no sítio eu tenho um jasmineiro.

Descobri, encantada, que coentro, pimentão, tomate, berinjela, quiabo, maracujá, laranja e jambo, já foram flores! Elas já se escondem na pequena semente, espreitam a terra contando o segredo do seu florescer.
O mistério da presença ausente pode ser visto num ramalhete: o amante para a amada, o pedido de desculpas com olhos multicores, o desejo desvelado na maciez, o pedido silencioso e humilde do botão depositado aos pés da cruz.
No livro O Amor que Acende a Lua, Rubem Alves escreve: "Numa coroa todas as flores deixam de ser flores. Elas não mais dizem o que diziam. Não mais são o que eram. Amarradas, contra a vontade, num anel artificial, do qual pendem fitas roxas com palavras douradas".
Deixam de ser, seguem como o corpo que ali jaz, sem vida.
Penso que talvez tenham sido escolhidas para acompanhar a mudança daquela matéria. Chegam fulgurantes ao outro lado, ornando o espírito. Não podem, tão lindas e coloridas, findarem aprisionadas e distantes da missão a que vieram.
Dentro dos meus livros há muitas flores secas, lembranças de mãozinhas que ofertaram-nas repletas de amor e inocência.
Dentro dos meus olhos há um jardim. Florescem margaridas, sempre-vivas, buganvílias, cravos, girassóis e papoulas, num campo a perder de vista, iluminado pelo sol poente, o vento balançando suas folhas. Ando espalhando dessas sementes. Abra as mãos. Os olhos. E os ouvidos. Sinta-as germinar.

domingo, 15 de agosto de 2010

Tristeza

Tristeza ou desgosto, segundo definição na Wikipédia, é um sentimento humano que expressa desânimo ou frustração em relação a alguém ou algo. É o oposto da alegria.
Confudimos, muitas vezes, tristeza com depressão. Mas estar triste não é estar deprimido, é estar saudoso de alegria.
A tristeza de não ter conseguido ser aprovado no emprego, de ter respondido um redondo não quando todo seu corpo mandava falar sim, de calar a voz e o abraço e perder a única oportunidade de ter feito o que era para fazer.
"O cavalo selado só passa uma vez". Eu escutava este dito popular e não entendia. Por que? Havia tantos cavalos, e tantas selas. E aquele mesmo cavalo, não podia voltar pelo mesmo caminho?
Não compreendia que nesse conselho havia entre as letras o mesmo mistério de 'águas passadas não movem moinhos', de 'palavras ditas e pauladas dadas, ninguém as tira'.
Não compreendia que a flecha lançada ia junto com este cavalo selado - a minha vida, a sua vida, a vida de todos, sempre em frente, como um rio que não permite que suas águas sigam senão em frente.
E às vezes meu espírito fica triste pela palavra que não disse, pelo abraço frouxo, por ter olhado somente de soslaio, pela semente jogada no espinheiro, pelo silêncio.
A minha tristeza dura pouco tempo.
Padre Airton Freire ( http://www.padreairton.blogspot.com/ ), tem uma música com um verso assim:
A vossa tristeza qualquer dia, se transformará em alegria.
E ninguém, tirará vossa alegria.
Ele fala da tristeza da alma, que espera contemplar a alegria eterna.
Nesta espera, da alegria, meu espírito canta, jubiloso, repetindo as palavras de Jesus "Eu vou mas voltarei, eu não vos deixarei".
Nossas tristezas não podem durar muito. Dentro de nós existe um saudade do eterno que nos impulsiona a ultrapassar barreiras. Existe, além do agora, bem ali, um horizonte que se abre - e enquanto aguardamos a promessa da alegria que não passa, vamos nos envolvendo em fazer o bem, em doar nossas mãos e ombros, em cingir nossas vidas às dores dos outros, em aplicar retalhos nos velhos cobertores - vamos transformando tristezas em alegrias.

sábado, 14 de agosto de 2010

Para meus amigos

Recebi hoje um texto de Padre Fábio de Melo que tem um trecho assim: ..."É quando no sepulcro do nosso coração, alguém descobre um fio de vida, e ao puxar esse fio, vai fazendo com que a gente se torne melhor."
O texto fala sobre amizade, sobre a capacidade que Jesus tem de, no meio de toda miséria pessoal, encontrar o regato onde corre a água límpida que todos vertemos.
Meus amigos são bem poucos. Posso enumerá-los. Posso contar com eles.
Não nos encontramos todos os dias, não nos falamos ao telefone com frequência.
Mas ao nos cruzarmos tenho a sensação de que ainda ontem estudamos para a prova de matemática, combinamos de nos encontrar na rua do comércio, vasculhamos nossos bolsos para juntar as moedas e comprar um refrigerante.
Meus amigos sofreram comigo quando estive doente. E comemoraram quando casei, quando fui mãe, quando aniversariei. Com alguns deles sofri quando perderam seus pais, seus irmãos, seus avós. Foi no abraço que pudemos confirmar nossa amizade. Foi na oração silenciosa que fiz e que recebi que compartilhamos a nossa santidade.
Padre Fábio nos recomenda ser como árvores, "Para que o outro quando olhar a árvore, saiba que nós estamos ali...Que nós permanecemos para fazer sombra, para trazer ao outro, um pouco de aconchego que ás vezes ele precisa na vida..."
Eu quero ser a árvore que abriga pequenos pássaros, que floresce. Quero minhas flores brancas e perfumadas como as do jasmineiro - beleza e perfume - abrigando sob meu galhos a cabeça cansada ou o corpo feliz dos que me amam e por mim são amados.
Quero ser árvore com longas raízes, que suportam ventos e tempestades.
Cora Coralina, escreve com propriedade, em Saber Viver:
Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
 
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela

Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,

Verdadeira, pura...
Enquanto durar.
Ser presença de Deus para o outro. Ser fonte de resgate, de alegria, a força que rola a pedra do sepulcro. Ser amigo. Como é Jesus.

Poesia e Biscoito

O que me alimenta a alma e o que me alimenta o corpo: poesia e biscoito.
Poesia das palavras, do sorrir da lua, do brincar das nuvens.
Biscoito de aveia, chocolate meio amargo, feijão com charque - aprendi que vazio estando, não fica o saco de pé. Alimento o corpo e abasteço a alma.
Os amigos e a viola (eu não tenho uma, mas gosto de escutar quem tem e toca), o pôr-do-sol e as minhas filhas, o silêncio ruidoso das idéias e o meu amor.
O sanduíche bem quentinho, café forte, pão com manteiga, papa de maisena que minha mãe faz, bolo de trigo feito com ovo de capoeira, tapioca, macarrão com muito molho.
Representados nas palavras: o meu corpo e a minha alma.
Em minhas mãos trago linhas por onde escorrem as letras sussurradas, os gritos urgentes, as esperas infindas.
Em meus olhos guardo a minha alma. Nos olhos, não no coração. Minha alma tem ânsia de ver o mundo.
Tem fome da poesia de todas as coisas.
Quero engordar minha alma e manter magro o meu corpo.