terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poesia da lágrima

Não gosto que me vejam chorando. Não gosto que ninguém me veja chorando.
As lágrimas são válvulas de escape, são a sangria da represa. Sentimentos transmutados em água salgada.
Ninguém nos ensina sobre essa mudança de estado. Não aprendemos a regra. Não há qualificação: fusão, vaporização, solidificação, liquefação, sublimação. A passagem do meu cérebro para o estado líquido não consta dos manuais, nem de tratados e eu ousaria dizer que um bom termo qualificatório seria mutação.
Certa vez fui ao médico homeopata e ele me fez a seguinte pergunta:
- Você sente vontade de chorar quando vê, na televisão, alguma tragédia?
E eu respondi, de pronto:
- Não.
E hoje ainda tenho a mesma resposta. Embora eu me comova com aquele sofrimento, meus olhos não choram.
A pergunta me incomodou. Fiquei achando que era insensível.
Outro dia fui a um velório. Familiar com quem não tinha muita aproximação, mas a minha comoção era tanta que mais parecia que eu estava velando minha melhor amiga de infância. A dor daquela mãe, a fortaleza intentada pelo pai, os abraços daqueles amigos... Aquele corpo tão jovem, inerte para este mundo. Tornei-me lágrimas naquele instante.
É tão fácil sorrir junto e tão complexo compartilhar aquela enchente que faz o outro soluçar.
Fazem arder meus olhos comer couve-flor no almoço - porque aquela que me é cara, que lambe a panela, não está à mesa comigo; e lembrar do meu avô; e assistir um filme meloso, com uma trilha sonora apaixonada; e decepcionar-me com quem gosto.
Despedidas também me ocasionam lágrimas.
Chorar me dá sono. A mutação em mim ocasiona efeitos colaterais. Desfaleço, imitando a intolerância que o cérebro tem à dor. Dormir me livra de chorar.

E de lágrimas feito o poema
Escrito em poucas rugas
Trilhas de curto percurso
Linhas de muita expressão
Olhos de alma ansiosa
Pelo conforto das horas tardias
Rimas de lágrimas fugidias
No aceiro das minhas escolhas
Incêndio nos olhos relutantes
Em deixar fulgurar pelo caminho
Transmutada composição.