sexta-feira, 6 de maio de 2011

Aquele momento

"Sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado
 e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo,
 como um relógio enguiçado preso no mesmo momento – aquele."
Clarice Lispector


Eu também, Clarice. Sou a mesma e sou outra. E a outra insiste em recordar-me a mesma.


Passos à frente nem sempre significam avanço. Passos largos e apressados às vezes nos levam para tão distante de nosso objetivo que voltar é um exercício sofrido e descrente. Abrir a porta, abrir a boca, abrir a alma. Tudo mudado mas ainda sou eu aqui.


Os versos tristes são os melhores? Não, não são. Eles revelam nas letras estranhas ao nosso pulso as nossas entranhas. Derramamo-nos nas suas entrelinhas - no anonimato. A tristeza é sentimento que escondemos porque, sendo o inverso da alegria, é o nosso avesso machucado, acabrunhado. Um sorriso triste, quem detecta? Aqueles a quem tentamos ludibriar: os que nos vêem e nos amam.


Nessa dicotomia existente entre ser  e tornar-se há o momento decisivo, aquele ao qual voltamos - mesmo sem querer. O momento da mudança, da metamorfose, da revelação, da ruptura, do reatamento.


Em nós, ainda que mudemos, para pior ou para melhor, coexistem, não sem conflitos, os valores e os amores de antes, de agora. É como, desculpem a comparação pueril, adotar um filhotinho de cachorro para substituir o outro, que agora morto, foi seu melhor amigo. No mesmo quintal habitará o amor saltitante e o amor de saudade. E embora a felicidade esquente suas mãos com calorosas lambidas, a saudade queimará seus olhos ao encontrar apenas o filhotinho.


Quem acha vive se perdendo, já cantava Noel Rosa e me repete com frequência querido amigo. Por isso achando que meu relógio enguiça inúmeras vezes ao longo tempo, vou me perdendo em achar. Tem nada não... Perdendo vou encontrando e reencontrando e criando. Vou achando que apesar do relógio é bom viver!