quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Prateleira de cima

Observei hoje ao vir para casa - moro numa ladeira, no pé da serra - um senhor com seus setenta a oitenta anos. Subia com dificuldade, coluna encurvada, seu corpo formando um ângulo agudo. Vinha devagar, como convém à idade.

Fiquei pensando, mais uma vez, em como a natureza é sábia.

Quando crianças temos um corpo flexível, uma disposição que não acaba nunca. Quanto mais obstáculos, melhor. Pulamos, corremos, escorregamos, saltamos num pé só, rolamos. Achamos terrenos regulares um troço muito chato. A muito custo sentamo-nos para ler o livro paradidático da escola. Nossa alma não tem as inquietações filosóficas do mundo, não passou ainda pelo fogo transformador das escolhas do crescimento. A inocência e a despreocupação não lhes dá flexibilidade.

No corpo flexível habita um espírito pequeno, tenro, porém sem a maleabilidade da vida vivida, sofrida, amada, abandonada.

Naquele idoso que encontrei acontecia exatamente o contrário: seu corpo curvado, com a mobilidade comprometida, guardava um espírito ginasta, adaptável, liquefeito. Seus olhos falavam das certezas e das dúvidas de quem sorveu a vida e proporcionou o crescimento ao espírito.

Não devíamos desejar nada que não fosse natural. Cada coisa em seu tempo: menininhas de vestido cor-de-rosa e saias curtinhas; senhoras com a sobriedade que lhes confere o tempo. Rapazes e moças numa diversão sem fim nas suas baladas, gastando a energia em escrever histórias para contar depois. E com isso não afirmo que os idosos devam ficar em cadeiras de balanço. Contudo não corroboro com a meninice de senhores e senhoras que agem como seus netos. Vitalidade e atividade? Sim. Frivolidade e infantilidade é que andam corroendo as estruturas dos adultos do século XXI.

Foi-se o tempo das vovós de cabelo em coque e dos vovôs que só iam até a praça jogar dominó. Viva! Viva! Hoje vão aos bailes, à praia, se exercitam nas academias, viajam. Estão vivos! Que bom que houve essa evolução.

Minha crítica fica para quem esqueceu que a vida passou por si. E quer permanecer um adolescente, extasiado diante da mesma atitude. Não deu e nem quer dá um passo à frente.

Alma e corpo. Flexíveis. Maleáveis. A alma continua crescendo, mesmo quando o corpo se curva e a mão já não alcança mais a prateleira de cima.