segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Se eu fosse um biguá


Se eu fosse um biguá...
            Meu nome seria Biguá, com b maiúsculo como convém à regra gramatical. O significado do nome traduz um traço físico - mbiguá - pés penugentos.  Pertenceria à pomposa  família dos Phala crocorax brasilianus.
            Provavelmente como ave eu seria como na minha versão humana – a maior de todas. Teria pernas e asas compridas e meu cantar seria bem agudo. Também viveria em bando – necessitando das imperfeições alheias para bem conviver com as minhas.
            Gostaria de peixes e mergulharia um sem-fim de vezes procurando as escamas mais brilhantes para saciar minha fome. Como um pássaro engajado teria grande dificuldade em lidar com a exploração da minha habilidade de exímio pescador – cena insuportável ver meus irmãos de argola no pescoço, na escravidão que só os homens sabem impor sem piedade. Quem não tem piedade é cruel.
            Seria um biguá revoltado caso passasse de pássaro à vara de pescar. Minha cara estamparia a tristeza da resignação, um cenho franzido, cheio de marcas profundas causadas pela impotência de resolver a situação.
            O menor oprimido, como a ave argolada, não tem altivez, caminha de cabeça baixa, cantarola um sonho interno de se ver libertado, de ser libertário. Contudo, o opressor é mais forte, insensível e egoísta – apenas a meta importa.
            O biguá livre é como o pecador absolvido pelo Senhor – tudo é céu e eternidade. O biguá argolado, como os escravos do Faraó – ansiando por nova terra e novo céu.
            Se eu fosse um biguá... Queria ser uma ave completa – livre, linda e louca. Louca não dos meus sentidos, mas das minhas vontades – voar por onde quisesse, pousar onde bem entendesse, pescar quando estivesse com fome e – imprescindível - engolir minha pesca.
            Se eu fosse um biguá, sendo criatura e ave de Deus traria comigo pedaços de muitos céus e campinas bem verdinhas. Não quereria estar no Rio Vermelho, refém de um senhor de olhos puxadinhos – no corpo e na alma – que me pusesse adornos.
            Talvez se eu fosse um biguá eu quisesse ser outra ave – um cancão, uma rolinha, um tetéu, uma asa-branca ou até um guiné (que grita ‘tô fraco’ para esconder sua fortaleza).
            Se eu fosse um biguá argolado, acuado e tristonho, com olhos vazios de alegria e cheinhos de desejos – seria infeliz,  porém com certeza teria do meu lado um amigo passarinho – um beija-flor ou um lourinho – cantando sempre uma pergunta: - e se você fosse gente? Lanço o desafio...